Um comentário no Instagram chama Sheila Jeffreys de “TERF” e sua entrevista de “LGBTfóbica”. Mas o que realmente está em jogo quando um homem nomeia, cancela ou apaga ideias e mulheres no debate público? Este ensaio provoca uma reflexão profunda sobre linguagem, poder e misoginia.

Veja também

a origem da política queer

“Lgbtfobia e transfobia. TERF tem que acabar.” Eis o comentário de um visitante da página da Ginna (@leiaginna), em um post que convida os seguidores e leitores a assistirem a uma entrevista exclusiva com a autora feminista Sheila Jeffreys. Além de resumir toda a trajetória de Jeffreys a “LGBTfobia e transfobia”, o visitante — por nós agora nomeado Néscio — também lhe dá um adjetivo: “TERF”. O livro “A origem da política queer”, de autoria de Jeffreys e recentemente publicado no Brasil pela Ginna; a entrevista com a jornalista e editora feminista Marina Colerato; o debate acerca da Teoria Queer e seus desdobramentos; o próprio pudor mínimo na discordância; nada disso é levado em consideração. Néscio se limita a nomear Jeffreys de acordo com o seu próprio horizonte de crenças. E ponto final – sinal gráfico que, a propósito, está presente duas vezes em seu curto comentário.  

TERF 

Néscio chamou Sheila Jeffreys e Marina Colerato de TERF, o que, em inglês, é uma abreviação para o termo pejorativo trans-exclusionary radical feminist [feminista radical transexcludente]. De início, pensemos no poder garantido a Néscio: o poder de nomear e, a partir disso, decidir quaisquer desdobramentos da percepção individual e coletiva da realidade. A capacidade humana de interpretar o mundo é fundamental para a nossa sobrevivência enquanto espécie; perceber, definir e narrar o mundo deu-nos a capacidade de nos organizarmos enquanto grupo nos espaços mais hostis. Victorri (2002), em seu ensaio a respeito do desenvolvimento da narração enquanto base da linguagem humana, apresenta-nos o conceito de homo narrans. Para ele, “os primeiros usos da função narrativa teriam consistido em evocar crises passadas para impedir comportamentos prejudiciais à sobrevivência da espécie, criando, por assim dizer, uma organização totalmente inédita no reino animal (…)” (Victorri, 2002, p. 122). Ora, ao organizar uma sequência fônica para a palavra “leão”, os primeiros humanos puderam alertar aos outros que determinado caminho não era seguro, ou que se fazia necessário certo cuidado. O resultado: a prevenção de mortes e perdas no grupo. Não é difícil perceber que, desde os primórdios,  nomear a natureza e as coisas garantiu aos primeiros grupos humanos certa proeminência. 

É o aspecto subjetivo da linguagem que poderá extrapolar, ainda mais, a materialidade do mundo que o humano nomeia. Ao designar um “leão”, o ser humano pode associá-lo não apenas ao felino selvagem, mas também a um outro ser humano, na tentativa de lhe ressaltar características dignas daquele animal (de acordo com a sua própria percepção dessas, que, sabemos, não está isenta do seu universo de expectativas): “calma”, “braveza”, “força”, “sonolência”, a depender de como aquele que nomeia enxerga o “leão”. 

A questão se torna interessante quando pensamos o interior dos grupos humanos: quem, dentre nós, tem mais poder para nomear? 

Em “A criação do patriarcado”, Gerda Lerner, ao discutir a Aliança Davídica, mostra-nos que a capacidade reprodutiva feminina sofreu certa usurpação no campo simbólico. Em detrimento da Deusa-Mãe geradora da vida, surge, paulatinamente, um Deus-Criador. Assim, o aspecto subjetivo da linguagem favorece, ao longo do estabelecimento do patriarcado, a justificativa para o poder masculino também no aspecto da criação, apesar de ser a geração da vida humana uma capacidade naturalmente intrínseca às fêmeas da espécie. Vale dizer que não foi a partir da linguagem que se criou a hierarquia entre machos e fêmeas; a linguagem traduz o mundo, mas, como já vimos, um mundo que é percebido por um observador. O patriarcado já se instituía quando o homem decidiu redesignar a realidade por meio de uma nova linguagem, que reforçou a nova organização que se estabelecia. 

Tão logo o Senhor Deus moldou, a partir da terra, todos os animais do campo e todas as aves do céu, conduziu-os a Adão, para observar como ele nomearia estas coisas: o nome com que Adão chamasse todos os seres vivos, este mesmo nome prevaleceria (Gênesis 2:19. Tradução nossa). 

É com este trecho bíblico que Gerda Lerner discute o aspecto masculinista da nomeação do mundo. Embora a linguagem tenha o seu aspecto subjetivo, que pode associar seres a percepções particulares, considera-se, em Gênesis, a percepção do macho. “Isso pode ter ocorrido tão somente porque a fêmea ainda não havia sido criada, mas o padrão se repete após a criação de Eva, quando Adão lhe dá um nome, assim como havia feito com os animais”, argumenta Lerner (2019, p. 397).  

Franz Fanon, em “Peles negras, máscaras brancas” (2020), parece-nos debater tema semelhante, embora com a perspectiva da racialização: “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Tenhamos a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (Fanon, 2020, p. 64). Ora, o ato de nomear cabe àquele a quem é concedido o poder. O homem branco europeu, partindo da diferenciação geográfica e cultural, nomeou os negros, e, assim, criou o seu Outro. O negro africano, não fosse a visita de seus algozes, não se veria inferiorizado, “outrificado” em relação ao europeu. Foi esse mesmo poder que, no mito da criação cristão, Deus concedeu ao homem em relação à fêmea da espécie. 

Voltemos a Néscio, o visitante, e seu comentário sobre Sheila Jeffreys: “Lgbtfobia e transfobia. TERF tem que acabar”. Néscio exerce, ao reduzir toda a produção de Sheila Jeffreys, o debate da Ginna e a entrevista concedida a Marina Colerato, o mais remoto poder dos machos da espécie: nomear. E mais: decidir o fim daquilo que o incomoda: “TERF tem que acabar.” O comentário de Néscio é tradicionalíssimo; um exemplo prático do mais antigo e violento sistema de poder: o patriarcado. 

LGBTfobia: isso te diz alguma coisa? 

Quando Néscio associa a entrevista com Sheila Jeffreys a “LGBTfobia”, ele articula quatro grupos minoritários (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) e os vincula ao medo (φοβία). Sheila Jeffreys — e possivelmente Marina Colerato, a entrevistadora — teriam medo desses quatro grupos minoritários. Pior: cometeriam crime, uma vez que, em decisão de 2019, o Supremo Tribunal Federal equiparou a “homotransfobia” (outra palavra para LGBTfobia) ao crime de racismo, tipificado na Lei n. 7.716/89. 

No entanto, fica a pergunta: por que Néscio fez essa associação? A resposta está na legenda do post (a que Néscio possivelmente se limitou para tecer seu ‘ilustre’ comentário): “a luta pelos direitos das mulheres e a importância de resgatar o sentido político da categoria ‘mulher’ em meio a um cenário de retrocessos e tensões”. Resgatar o sentido político da categoria “mulher”, aquela a quem o deus cristão não concedeu o poder de nomear, e a quem Néscio pretende extinguir (“TERF tem que acabar”) é, afinal, um crime? Por que lésbicas, gays, bissexuais e transexuais temeriam o sentido político da categoria “mulher”? 

De início, vale separar as categorias. Lésbicas, gays e bissexuais são pessoas que se atraem, de forma exclusiva ou alternada, por pessoas do mesmo sexo. Transexuais são pessoas que, independentemente de sua atração sexual e amorosa, sentem desconforto profundo com os papeis sexuais (gênero) a elas designados e/ou com seu próprio corpo sexuado. Trata-se, afinal, de universos diferentes e que, em primeira instância, nem mesmo deveriam pertencer a um mesmo grupo (LGBT, salvo o controverso e ininteligível restante da sigla [QIAPN+]). Em uma análise mais profunda, lésbicas e gays já teriam dificuldades consideráveis em associar-se enquanto grupo político, uma vez que a hierarquia estabelecida entre machos e fêmeas (quem nomeia e quem é nomeado, no patriarcado) não se dissolvem nas associações, por mais bem intencionadas que sejam. 

Feministas lésbicas, que escolheram organizar e viver suas vidas separadamente dos homens gays, estão há muito tempo cientes de que, entre lésbicas e gays, não havia necessariamente uma comunhão de interesses. A poeta e autora Adrienne Rich escreveu no final dos anos 1970, quando o feminismo lésbico estava em seu auge, que os interesses das lésbicas eram ameaçados tanto pela cultura heterossexual quanto pela cultura dos homens gays. […] O feminismo lésbico ofereceu às lésbicas o espaço necessário para que pudessem criar valores feministas lésbicos e expressar seu amor pelas mulheres (Jeffreys, 2025, p. 22-3). 

Feita a distinção, é importante salientar que a definição de “mulher”, além de uma designação historicamente significativa para que grupos humanos reconhecessem seus membros (machos e fêmeas) através da linguagem, é de extrema importância para que as mulheres reivindiquem e, assim desejamos, alcancem a capacidade de nomear (substituímos “poder” por “capacidade” uma vez que, alcançada a igualdade entre machos e fêmeas, não haverá mais o “poder”). Essa definição não ofende lésbicas, gays e bissexuais, que, a propósito, valem-se dela para fundamentar sua orientação sexual. Ora, se homens gays se atraem sexualmente por homens, machos adultos da espécie humana, têm seu desejo delimitado: não se atraem por mulheres, as fêmeas adultas da espécie humana. Se a categoria “mulher” desaparecer da linguagem humana, desaparecerá também a orientação sexual (tenha ela a origem que for)? 

Por que Néscio supõe ser importante para lésbicas, gays e bissexuais que a categoria “mulher” deixe de existir na língua, nos contratos, no imaginário e nas regras coletivas (leis)? Será que Néscio refletiu sobre o seu comentário, ou apenas reproduziu um discurso midiático, que aterroriza as mulheres e implode a (difícil) união entre lésbicas, gays e bissexuais? 

Cabe-nos nomear: Néscio é misógino e LGBfóbico. 

REFEÊNCIAS 

BIBLIA. Gênesis. In: Biblia Sacra. Disponível em: https://www.thelatinlibrary.com/bible/genesis.shtml#2. Acesso em: 29 abr. 2025. 
FANON, Franz. Peles negras, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020. 
GERDER, Lerner. A criação do patriarcado. São Paulo: Cultrix, 2019. 
JEFFREYS, Sheila. A origem da política queer. São Paulo: Ginna, 2024. 
VICTORRI, B. Homo narrans: le rôle de la narration dans l'émergence du langage. Langages, Paris, n. 146 (L'origine du langage), pp. 112-125, 2002.

Marcelo Brugger integra a Aliança LGB, braço brasileiro da organização internacional que promove o direito de lésbicas, bissexuais e homens gays de se definirem como pessoas atraídas por indivíduos do mesmo sexo.

Conteúdos Relacionados

Conteúdos Relacionados

Conteúdos Relacionados

Conteúdos Relacionados

Compartilhe

Compartilhe com sua rede

fechar