Na Idade Média, existiu um movimento internacional de mulheres que inventou uma forma de vida radicalmente política: as beguinas. Elas viviam entre mulheres sem ser monjas, trabalhavam, viajavam sozinhas, escreviam em língua materna e desenvolveram uma teologia que desafiava o poder clerical.
Não é possível superestimar a importância de se conhecer a história das mulheres e seus movimentos de liberação, sobretudo por parte das mulheres, ainda que não somente. O conhecimento sobre as mulheres e sua história é uma fonte preciosa de entendimento sobre a história e a sociedade em que vivemos, pois são dois os sexos que fazem a história, mas apenas um deles, o masculino, centralizou em si a história.
Não é possível superestimar a importância de se conhecer a história das mulheres e seus movimentos de liberação, pois toda vez que nos abrimos para esse conhecimento, um universo novo se abre para nós — e descobrimos o quão pouco conhecemos sobre a nossa própria história. Não é raro, também, nos surpreendermos com o quanto as mulheres já escrevem e, ainda assim, pouco escreveram frente à hegemonia masculina inabalável.
Eu vi uma frase circulando nas redes sociais, atribuída a bell hooks, que diz: “nenhuma escritora negra nesta cultura pode escrever ‘demais’. Aliás, nenhuma escritora pode escrever ‘demais’… Nenhuma mulher jamais escreveu o suficiente”.
A diferença sexual na história, de María-Milagros, me fez pensar nessa frase e em uma outra afirmação que podemos criar a partir dela: “nenhuma mulher já leu [história das] mulheres ‘demais’… Nenhuma mulher sequer já leu mulheres e [suas histórias] o suficiente”. Sejam [histórias de] mulheres ocidentais ou orientais, brancas ou pretas, amarelas ou indígenas, ricas ou pobres.
Talvez seja exatamente por isso que não se sai a mesma, ou o mesmo, depois de um livro sobre história das mulheres. E talvez por isso também haja sempre algum elemento surpresa que nos faça lembrar o quão pouco conhecemos sobre as diversas práticas de liberdade que as mulheres criaram e praticaram antes do que chamamos de modernidade e, agora, pós-modernidade.
Entre os séculos XII e XVIII, por toda a Europa — de Barcelona a Flandres, de Córdoba a Norwich, de Sevilla a Paris, de Valença a Jerusalém —, existiu um movimento internacional de mulheres que inventou uma forma de vida radicalmente política: viver entre mulheres, sem ser monjas. Rezar e trabalhar, mas não em um monastério. Ser fiéis a si mesmas, mas sem votos de obediência. Ser cristãs, mas não na Igreja constituída.
As beguinas, — que na Castela do século XV em diante foram denominadas beatas, o que quer dizer “felizes” ou “bem-aventuradas” —, não se casavam. Milagros argumenta que elas “contornaram com essa decisão o contrato sexual e a heterossexualidade obrigatória, sem ser mulheres públicas ou privadas e sem fazer voto de castidade. Isso quer dizer que, na forma de vida beguina, muitas mulheres expressaram seu sentido livre de ser mulher mediante uma invenção cuja substância, tomando formas históricas distintas, se repete vez ou outra no tempo: a substância é o saber levar as relações humanas para fora da dicotomia público/privado — uma antinomia do pensamento útil ao patriarcado desde suas origens —, deixando-as, assim, soltas e livres, disponíveis para o uso e o desfrute de uma mulher”.
As longas viagens marcam a história dessas mulheres, que ficaram documentadas nos escritos antigos, como a viagem de Rafaela Pagès, natural de Sarrià, perto de Barcelona, que partiu sozinha em uma viagem a Jerusalém. Nos mesmos anos, sóror Clara viajava para Roma com uma companheira, em uma viagem que durou mais de sete anos.
Outras muitas mulheres estão documentadas nos mesmos registros: Bernarda Donada, de Maiorca, que ia a Compostela com oito companheiras. Sor Francesca, de Valença, que vinha de Jerusalém. Sor Esclaramunda, de Pisa, a caminho de Santiago. Sor Juana, de Toledo, indo a Jerusalém.
Mulheres que viajavam e se sustentavam com a caridade de quem encontravam no trajeto. Mulheres que se hospedavam em monastérios. Mulheres que não iam pelo caminho mais curto, mas davam voltas para visitar lugares ou encontrar outras mulheres, tecendo redes internacionais de presença, palavra e amizade.

As beguinas, ou beatas, foram mulheres que se especializaram em sua espiritualidade. No que chamavam de Espírito Livre — livre da hierarquia eclesiástica, de toda regra religiosa. Elas viviam sozinhas, ou em pares, ou em pequenos grupos. Normalmente trabalhavam na indústria têxtil, tecendo e costurando, ou copiavam e iluminavam manuscritos e ensinavam meninas nas escolas chamadas “Amiga”. Elas cuidavam de doentes. Acompanhavam moribundos como “acabadoras” da vida e mediadoras da morte. Viviam de suas rendas, quando as tinham, ou de seu trabalho. Às vezes tornavam-se pordioseiras, passando pela experiência de viver da caridade das pessoas, pedindo esmolas pelo amor de Deus.
Elas se vestiam discretamente. Legavam seus bens umas às outras ao morrer. Trocavam cartas entre amigas, de mestra à discípula. Tinham relações amorosas. Mantinham contatos vivos entre cidades e territórios. Formavam uma rede internacional que atravessava fronteiras. E escreviam, em suas línguas maternas, não em latim.
Nas pesquisas de Milagros, ela descobre que “trata-se de uma forma de vida inventada por mulheres para mulheres: houve beguinos [ou begardos], mas foram poucos em número e, ao que parece, pouco significativos”.
A forma de vida das beguinas foi condenada e perseguida durante o período de caça às bruxas. Em 1310, em Paris, uma beguina chamada Marguerite Porete foi queimada viva por seu livro O Espelho das Almas Simples, uma das obras-primas da mística ocidental. Escrito em francês medieval, não em latim (como demandava o clero), o livro narra a experiência mística de Marguerite — um longo processo de autoconhecimento que a levou ao que ela chamava de País da Liberdade. As personagens principais do livro são Dama Amor, Razão e Alma Anonadada. A linguagem é a do amor cortês, da poesia trovadoresca, da espiritualidade livre.
Marguerite foi detida em 1308 e condenada por um tribunal ao qual ela nunca se dignou responder. “Como se não quisesse dar pérolas aos porcos”, diz Milagros. Depois de sua morte, o livro circulou anonimamente por séculos. Foi traduzido para o latim, italiano, inglês, talvez alemão. Simone Weil o leu no fim de sua vida, em 1942-43. Só em 1944 a medievalista italiana Romana Guarnieri recuperou a obra, editou-a e demonstrou sua autoria feminina. A obra de Porete foi publicada no Brasil pela editora Vozes.
Marguerite não estava sozinha. Havia Matilde de Magdeburgo, que escreveu Revelações ou a luz fluente da divindidade, combinando a linguagem do amor cortês com o Cântico dos Cânticos. Havia Hadewijch de Antuérpia, poeta e visionária. Havia Juliana de Norwich, que se emparedou na igreja de San Julián na Inglaterra, para dedicar-se à contemplação — mas deixou uma janela aberta ao exterior, pela qual recebia visitantes em busca de conselho, de respostas, de diálogo espiritual.
Elas desenvolveram o que chamaram de “teologia em língua materna”. Uma ciência divina que desafiava frontalmente o poder clerical. Elas não deixaram que Deus assumisse a autoridade da mãe, não juravam em nome de Deus. Reconheciam na língua materna — e na mãe que a ensina — o vínculo com a verdade. É a mãe, não Deus nem o Estado, a garante da verdade do que se diz. Ao ensinar a falar, ela ensina a coincidência entre as palavras e as coisas. Ensina, assim, o sentido da autoridade.
As beguinas não pediram ao papado que confirmasse sua maneira de viver. Nunca se rebelaram contra a Igreja. “Para tornar viável em seu mundo esse desejo pessoal, inventaram a forma de vida beguina, uma forma de vida requintadamente política, que soube situar-se além da lei, não contra ela”.
O Concílio de Viena, em 1312 — dois anos depois que Marguerite foi queimada —, condenou as beguinas como suspeitas de heresia. No final do século XV, tentaram incorporá-las à vida monástica regulada. A Revolução Francesa, no século XVIII, proibiu sua forma de vida. Mas elas persistiram e continuaram existindo.
Em Maiorca, em 1510, uma beguina chamada Elisabet Cifre fundou na rua Montesión de Palma a Casa de la Criança, uma escola para meninas internas de quatro a dez anos. Elisabet foi “madre reitora” entre 1510 e 1542. A escola teve rapidamente muito prestígio e existiu até meados do século XX. Hoje continua no lugar uma comunidade de mulheres. Elisabet está enterrada na catedral de Palma.
Em outras palavras, a historiografia ocidental omitiu sistematicamente a diferença sexual e tratou as mulheres como ausências, exceções ou vítimas passivas. Mas mulheres criavam, amavam, pensavam, viajavam, escreviam e organizavam a vida de formas radicalmente diferentes dos homens. E essa história nunca deixou de existir. Aqui, voltamos ao começo. A preciosidade de se conhecer a história das mulheres reside justamente na riqueza inestimável de conhecermos nossas práticas de liberação.
IMAGEM: Beguina, gravura em madeira, ''Des dodes dantz'', impressa em Lübeck, 1489.